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Participação popular é preciso, sim. Mas, de que maneira?

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Por Amélia Gonzales

O volume do rádio do táxi estava alto, pedi para o motorista diminuir um pouco. No quase silêncio, o inquieto começou a falar. E, como não podia deixar de ser, já que era o assunto do momento de ontem,  iniciou um discurso sobre a manifestação contra o aumento do valor das passagens dos ônibus.

“Tá tudo errado, esses caras querem violência, atrasam o lado de quem precisa trabalhar. E a polícia também não podia agir daquele jeito. Não são pagos para defender o cidadão?”

Deixei falar. Em geral eu gosto de conversar com taxistas, mas havia dois problemas ali que me incomodavam muito. O primeiro, crucial: eu estava atrasada. E quando estou atrasada eu foco no relógio, na angústia do tempo, dano a pensar sobre como seria melhor uma vida sem correrias. Mentalizo uma casa no campo, com cachorros, livros, discos, amigos…

O segundo problema era o assunto mesmo. Não gosto de insuflar discussão quando tem só dois lados: vira Fla X Flu e eu sou ruim de jogo. Prefiro debates onde a gente tenha caminhos para respirar, discussões que, quando se acabam, deixam na gente sensação de que se contribuiu para melhorar alguma coisa. Nem que seja para fazer o tempo escoar sem tanta angústia. Não era o caso.

Pulei do carro antes mesmo de chegar à Senador Dantas porque o trânsito estava mais lento do que eu. E só quando estava lá na sala assistindo à apresentação do presidente do Instituto Ethos, Jorge Abrahão, sobre o estudo que fizeram, cujo resultado dá conta de que estados e municípios não andam compartilhando com os cidadãos, como deveriam, os investimentos que estão fazendo com nosso dinheiro para a realização da Copa 2014, é que me dei conta. Ali eu teria elementos suficientes para nutrir e enriquecer o debate que não tive com o taxista. Porque, de um jeito ou de outro, estávamos falando de participação cidadã. Ou melhor: de como as pessoas que escolheram morar em grandes cidades e elegem políticos para representá-las decidem (ou não) tomar parte da gestão administrativa.

Organização que tem entre seus mais de mil sócios representantes de grandes multinacionais, o Ethos entra nessa história como sociedade civil. Partiu dele, com a chancela da Organização das Nações Unidas (ONU) e algum dinheiro dado por uma das associadas (a Siemsens), a ideia de coletar dados dos 11 governos dos Estados que receberão os jogos da Copa 2014 para avaliar o nível de transparência do que está sendo feito.

O trabalho começou no dia 30 de janeiro desse ano e terminou no dia 10 de junho. Primeiro eles mandaram ofícios com pedidos de informação pública, com base na Lei de Acesso à Informação. Quatro não deram a menor bola: Amazonas, Rio Grande do Sul, Rio Grande do Norte e Ceará. Mas, mesmo os outros sete que deram alguma resposta não cumpriram o prazo de 20 dias exigido por lei (Bahia, Mato Grosso, Minas Gerais, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo).

Bem, mas assim mesmo a equipe do projeto, que se chama “Jogos Limpos”, decidiu ir aos sites e coletar as informações que pretendiam. A elaboração dos indicadores foi um processo que contou com a participação, por meio de consultas públicas, de dezenas de entidades e especialistas.

Dos onze Estados analisados, dois foram classificados com nível muito baixo. Um exemplo: não há, no Rio de Janeiro, um canal específico para as famílias que vão ser impactadas pelas obras saberem como ou quando vão ser indenizadas, para onde serão levadas, coisas desse tipo. Ou ainda: a questão da renúncia fiscal é uma informação que não se consegue obter nos sites. E deveria, porque sem essa informação é impossível, segundo Abrahão, chegar ao valor total do investimento público para a realização da Copa.

—- Há leis internacionais nesse sentido. Quando se decide um investimento, isso deveria ter um mecanismo de diálogo anterior com a população . Vai fazer um estádio? Qual o impacto da obra? O que isso vai gerar? É uma cultura que nós todos – cidadãos e governos – temos que avançar. Há um dever de transparência que não vemos espelhado em coisa pública – disse o presidente do Ethos.

O cenário é ruim. Onze dos 90 Indicadores de Transparência não foram cumpridos por nenhum dos Estados. Mas duas iniciativas são dignas de nota, sempre com o objetivo de alavancar um diálogo, tentar replicar exemplos: o governo do Ceará elaborou uma cartilha orientando as famílias cujas casas serão desapropriadas por conta dos preparativos para a Copa. E Pernambuco publicou a lista das indenizações por desapropriações de 80% de suas obras. Três estados avaliados ainda não criaram nem o Serviço de Informação ao Cidadão (SIC) presencial exigido pela Lei de Acesso à Informação que entrou em vigor há mais de um ano: Mato Grosso, Rio de Janeiro e Rio Grande do Norte.

Houve ainda, no estudo, uma separação entre o desempenho de cidades e de estados. No geral, os estados fornecem mais dados do que as prefeituras, mas dois ficaram com a classificação “Muito Baixo”: Amazonas e Rio Grande do Norte. O Ceará obteve a melhor nota, merecendo uma classificação de nível “Alto”, seguido por perto por Pernambuco:

— O Estado de referência tem um sotaque nordestino. Supostamente aqueles que mantêm uma preponderância econômica no país não estão mostrando isso nos indicadores de transparência e estamos a 364 dias da Copa do Mundo – disse Abrahão.

Os indicadores avaliaram os governos com base em quatro grandes questionamentos: existem canais de informação pelos quais a população pode ter acesso aos dados sobre os investimentos necessários para realizar a Copa? Esses canais funcionam bem? Eles fornecem as informações necessárias para o controle social dos investimentos? A participação social é permitida?

E eu me pergunto: se a participação social fosse mais facilitada, será que aquelas pessoas que estavam ontem, anteontem e, pelo que leio nos jornais, estarão também na segunda-feira fazendo manifestação nas ruas, teriam paciência, controle e foco para ir aos sites, pesquisar, fazer sugestões e cobrar? Infelizmente, acho que não.

Em conversa com um amigo, debatemos a questão. O que impede, por exemplo, que um estudo como esse ganhe mais visibilidade e interesse junto ao cidadão das ruas?

“Não sei se é este o caso – mas a comunicação, a oratória, a retórica das ONGs afasta muito. Parece que eles não falam em português e se esmeram em escarafunchar preconceitos onde não existem, perdendo o foco. E isso se espalha para toda a área de sustentabilidade. Esse assassinato lento do português enfraquece as mensagens…” disse ele. É, pode ser. Mas não fiquei convencida.

Um dos destaques da avaliação dos indicadores é a realização de audiências públicas que, como se sabe, é o canal que a população tem para se pronunciar sobre as obras. Só Rio de Janeiro, Bahia, Mato Grosso e Pernambuco disseram ter realizado as tais audiências, mas eu, de novo, pergunto: qual a eficácia desses encontros? Quem pega em pedras para manifestar descontentamento estaria disposto a pegar em lápis e caderno para anotar questões referentes ao plano do legado da Copa, se as obras contém indicadores e metas de cumprimento e sugerir impactos menores, dados melhores?

A sensação, para quem mora no Rio e em São Paulo e não participa dessas manifestações violentas, é de desânimo. Dá vontade de alçar voo, buscar outros espaços, deixar ruas e calçadas para  os maus governantes e os maus residentes. Em plena era da comunicação sem fronteiras, o que parece é que eles estão investindo para se voltar à Idade da Pedra.

Publicado originalmente aqui:  http://g1.globo.com/nova-etica-social/platb/2013/06/14/participacao-popular-e-preciso-sim-mas-de-que-maneira/

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